quarta-feira, 28 de março de 2007

Pipoca

Enquanto o circo pega fogo
Eu bato papo com o pipoqueiro

(um texto antigo mas que me explica bem, de um eu do passado recente, o que eu mesmo penso sobre a fogueira das vaidades)

A literatura não obriga os bons escritores a sobreviverem de outras profissões. Se maldoso eu fosse, diria que os bons conseguem viver só de literatura. Mas também seria uma inverdade dentro da realidade, ainda mais da brasileira. A realidade social é que obriga os escritores a sobreviverem em profissões diversas da que têm vocação ou talento. Vocação tanto os bons quanto os maus escritores têm. Mesmo os últimos podem melhorar com o aprimoramento técnico, mas o talento não se compra na farmácia e nem vem do berço. O talento forma-se na libertação da mente. Então o bom escritor, que não sabe abusar das oportunidades quando estas se atiram na sua frente, sobrevive vendendo sua força de trabalho de outras maneiras.

Essa vida confusa poderia criar tensão no escritor se assim ele se sentisse pressionado pelos amigos, família ou por seus próprios preconceitos e regramentos no convívio com a sociedade. Mas, com o tempo, e agora passo para a primeira pessoa, fui aprendendo a conviver com as duas, ou mais, vidas. Também tenho o desejo, não sei se muito bem interpretado, de ser um ator de minha própria vida. Esse desejo também transparece na escrita. A necessidade da imaginação se libertar nas vidas que, infelizmente, não viverei, se multiplica quando escrevo. Mas a necessidade física de manter meu conforto, eu gosto do conforto, meus vícios e minha personalidade, faz com que esse campo de atuação se espalhe pela realidade.

O que se discute, se é que se quer discutir, é até aonde o escritor vive a realidade? Um escritor totalmente voltado para a escrita vive a realidade do escritor. Centrada, muitas vezes silenciosa, voltada para o livre escrever sem preocupações mundanas. Diferente do escritor que sobrevive praticando outras profissões. Sua imaginação se funde ao cotidiano abjeto. Ele alimenta esse cotidiano e se alimenta dele. É uma vida mais ativa. Colorida. Confusa. Mas não diria esquizofrênica. Ele continua sempre sendo um escritor. Ao mesmo tempo objetivo em seu trabalho não-literário e disperso em sua vida social. Esse limite entre a realidade e a literatura é que faz com que o escritor sinta a vida fluir em suas histórias e deixa a imaginação literária contaminar sua vida profissional.

Se eu reclamo dessa dualidade? Não. Admito que não. Se vagabundo pudesse ser, vagabundo eu seria. E deixaria de escrever. A vida que me envolve me impulsiona a continuar a recriando em tudo aquilo em que escrevo. Se, nos sonhos que os poetas sempre têm, amanhã ganhasse na loteria uma quantia que fizesse com que eu pudesse deixar de trabalhar, de modo algum me submeteria a vida monástica de um literato. Me jogaria em outras empreitadas, tentaria viver as vidas que a vida de contador não me permite viver. Sugaria as vidas e as histórias alheias de toda a realidade exterior que me fosse possível capturar e saborear. E multiplicaria essas vidas em minhas histórias no máximo de vida que me coubesse viver. Enquanto isso, vivo o que me cabe, sem mais e nem menos, contando dinheiro dos outros assim como quem conta os dias de vida de trás pra diante. Sem pensar.

(publicado originalmente em http://www.bureaudefatos.com.br/cornelio_benvenutti.htm)

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