sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

POR UMA VIDA SEM JUROS

(publicado na edição de ontem do Diário Gaúcho)

Uma das coisas que mais me impressiona nesses dias de crédito desenfreado e consumismo feliz é a predileção quase orgástica pelos aparelhos de televisão. Não os aparelhos comuns, claro. Ninguém mais quer saber de 20 polegadas, tela anti-reflexo, pensamento pequeno, não. Tem que ser LED, HDMI, LCD, USB e mais um monte de siglas que o cara tem que pensar parado se não embaralha tudo na mente e acha que tá tentando descobrir qual partido não votar.

Tem gente que derruba parede pra comprar aquela tevê de cinema. Outros gastam o que não tem, se endividam, parcelam no cartão, pra ter celular com tevê, tevê no carro, no banheiro, se duvidar um aparelho que cubra toda a parede. Dizem que tem. 103 polegadas. Só entra no apartamento com um guindaste. Eu, ein?

No fim de tudo a programação da TV é a mesma para todos. Nem tendo cabo se altera tanto. Os canais se multiplicam em reprises das reprises, seriados sem sal, eventos esportivos que se aglomeram ou novelas que todos sabem o que vai acontecer antes lendo a revista de fofocas. Não interessa a qualidade da imagem ou o tamanho da tela quando o recheio é o mesmo.

Eu nasci na década de 1970. Geração televisiva. Cresci junto com a evolução da TV brasileira. Passei muitas manhãs na infância assistindo desenho animado, mas nunca me fixei no aparelho. Controle remoto pra mim já é um luxo. Daí que quando me perguntam qual marca é meu aparelho, não sei dizer. Não presto atenção. Me interessa o que sai lá de dentro.

E o que sai muitas vezes me aconselha a desligar o aparelho, aquele que nem sei qual é, e sair pra dar uma volta. Observar o nada. Flertar com as possibilidades. Divagar sobre o lugar comum. Bater um papo com um outro qualquer sobre assuntos banais. A vida ainda está lá fora. E dizem, é bem mais barata. Apesar de ser melhor se for vivida à prestação. De preferência sem juros.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Século XXI

São Paulo, sábado, 01 de janeiro de 2011 


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RÉPLICA 

Zona de confronto versus zona de conforto da crítica

NELSON DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA 

Li com bastante atenção o artigo do editor da Ilustríssima, Paulo Werneck, sobre a antologia "Geração Zero Zero" (Ilustrada, 18/12). Mas confesso que, terminada a leitura, precisei verificar o cabeçalho do jornal. Fiquei em dúvida se estamos mesmo em 2010.
O problema central do artigo não são as falácias de comunicação ou a piada inocente, mas o descompasso entre texto e contexto. Sinal disso é certa visão luddista do marketing.
Os argumentos com falhas lógicas, de difícil comprovação ou refutação (as falácias), são muito comuns em debates e artigos de opinião.
Poucos articulistas conseguem evitá-los. Mas a disfunção principal do artigo de Paulo é mesmo de cronologia. Vivemos numa época em que as verdades são provisórias, mas o artigo, cheio de certezas perenes, não aceita isso.
Enquanto a Geração Zero Zero dialoga com a ambiguidade, ele cobra mais nitidez.
Porém nitidez objetiva é assunto da matemática e da ciência, não da arte e da literatura, sempre subjetivas.
Aliás, é bom lembrar que certas áreas das ciências exatas já aceitaram a ambiguidade inevitável.
É com elas que a Geração Zero Zero interage.
Nossa antologia relaciona-se, por exemplo, com o princípio da incerteza de Heisenberg e o gato morto-vivo de Schrodinger.
Com a nanomedicina e as próteses neurológicas. Com a bizarra matéria escura que compõe noventa por cento do universo, mas ninguém sabe o que é.
Por pertencer ao passado, o artigo de Paulo Werneck defende as leis de Newton para a criação poética.
Também reforça, com desmedida bronca, a ojeriza à ideia de geração-com-recorte-temporal, procedimento comum nas artes plásticas.
Isso já aconteceu antes, com a Geração 90. Mas só agora eu noto essa "gerafobia" quase consensual, esse medo exagerado de geração.
A intenção primeira da nova antologia é divulgar a obra dos ótimos ficcionistas que estrearam na primeira década deste século.
A intenção segunda é trabalhar na zona de confronto, fora da zona de conforto do leitor e da crítica newtonianos. A terceira intenção? Não há.
Não existe qualquer intenção demoníaca oculta, de tomada do poder estabelecido, de revolução cultural etc.
O escritor Santiago Nazarian escreveu em seu blog: "Não há nenhum grande plano nefasto por trás, não há nenhuma intenção perniciosa. É só (mais) uma antologia".
Concordo totalmente. "Geração Zero Zero" é só (mais) uma antologia de ótimos ficcionistas brasileiros.

NELSON DE OLIVEIRA é autor de "Poeira: Demônios e Maldições" (Língua Geral) e organizador da antologia "Geração Zero Zero", que será lançada no primeiro semestre de 2011 pela Língua Geral, com 21 autores de ficção nacionais.