terça-feira, 22 de setembro de 2020

MEU AMIGO BOB

São seis meses em casa, não totalmente em casa, mas a maior parte do tempo, trabalhando e vivendo enquanto esperamos o fim de tudo, da pandemia, da escalada de estupidez que tomou conta do Brasil. Eu, Lorenzo, a gata Miauski e meu amigo Bob, já que a Betine ficou presa em Bento, separados por um vírus, aqui estamos. 

Confesso que nunca fui muito de levar cachorro pra passear, o Bob se acostumou a ficar em casa, latindo na sacada e observando o movimento alheio. A umidade renitente do inverno portoalegrense trouxe pra ele a alergia de pele e a otite, de formas violentas as duas. Foram mais de dez visitas à clínica veterinárias e centenas de reais gastos para ajudar meu amigo Bob. 

Limpar ouvidos várias vezes ao dia, colírio nos olhos secos, banho de xampu caro uma vez por semana, secar todo o pelo, aparar, passar creme na pele pra aliviar a coceira e o vermelhidão, sofreu  esse meu pequeno amigo.  E nessas idas e vindas ele começou a gostar de sair, mesmo que continue sendo o velho Bob de sempre. Nunca foi muito de caminhar. A lei do menor esforço chegou ali e fincou pé.

Bob sai todo feliz, abanando o rabo e rebolando, e ele é muito engraçado quando faz isso, não tem quem não ache fofo e comece a rir. E dispara na minha frente, me puxando pela coleira e tentando guiar meu caminho. Pernas curtas de shih-tzu, coitado, pula um meio fio alto e dá de focinho em paralelepípedo. Bufa e continua em frente. Ainda parece querer comandar.

Dou a volta na praça, outros cachorros querem o cheirar e latir. Bob paralisa e fica quieto. Ele não é muito fã de outros cachorros. Ele gosta é de gente. Se lhe dão atenção, já quer pular no colo e se enroscar nas pernas.  Pode parece que Bob seja meio burrinho, mas é na burrice dele que mora a esperteza. Bob se acha humano e ignora os outros de sua espécie.

Sigo em frente, que agora que comecei a sair do cafofo protegido vírus, lógico que estou de máscara, Bob vai ter que perder o tempo perdido, e os quilos ganhos, nessa nossa trajetória hercúlea pelas ruas do menino Deus. Moro aqui há quinze anos e não conheço direito o próprio bairro. Acostumado a passar a semana toda no trabalho e voltar para casa só para dormir, nunca me ative em caminhar despreocupadamente pelas redondezas. Bob me acompanha nessa (re)descoberta.

Muitas ruas pequenas, travessas, casario baixo ou condomínios de sobrados dos anos 1950 e 60, não deixa de ser muito parecido em muitos aspectos com meu velho conhecido São Geraldo, só que com mais gente nas ruas, mais armazéns e ferragens pelo caminho com praças abandonadas e grama alta, que o Bob teima em desviar.

Quase quarenta minutos de rua e Bob começa a dar os doces, senta a bunda e não quer mais caminhar. Força a coleira pra trás, dizendo pra mim que "não mesmo, cara. Chega." Mais um pouco Bob, já estamos quase terminando. Como tu não vai me acompanhar nessa? Logo agora? Ele bufa, de novo, e dá um pique final em suas pernas curtas, mas vigorosas.

Chegamos em casa e ele se atira em um pote de água e eu abro uma cerveja. Meio dia? Dia de semana? Estou quebrando minhas próprias regras, mas e daí? Bob, meu amigo, merece que eu comemore junto com ele nossa pequena vitória diárias, que para muitos pode parecer quase nada, mas para nós é uma vida. Nossa vida. Afinal, Bob me fez sair de casa. E a ele devo isso.


 

 

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Rory Gallagher, Fantasma do Rock

Rory Gallagher é um fantasma. Não, vocês não acreditam? Rory viveu 47 anos sobre esta terra e passou flamejante e insano como um foguete de von Braun, rasante sobre o céu da Europa e América, Rory nasceu sob o espírito iluminado dos deuses do blues e do rock. Não é a técnica que faz de um simples homem um santo a perpetrar os caminhos inavegáveis deste mundo. É preciso ter alma.

Fantasmas têm alma. Sei porque eles me dizem à noite, enquanto durno. Somos irmãos e bebemos na mesma fonte alcoólica de desejo e obsessão. Os fantasmas são obsessivos. Rory morreu na década de 1990, em meio aos noticiários da recente morte do rock, de Kurt Cobain e o fim dos tempos. Rory não tinha mais fígado. Quem sabe ele trocasse seu fígado por mais 40 anos tocando guitarra? Quem sabe? Um transplante mal sucedido deixou a Irlanda em prantos e os fantasmas em polvorosa. O rock morreu com Rory Gallagher.

Rory começou sua carreira no explosivo trio Taste, tão genial quanto Cream, tão explosivo quanto Yardbirds, tão homérico quanto Jimi Hendrix Experience ou catártico quanto Doors, Taste se impregnou tanto de blues e rock que se vitimou em meio às personalidades conflitantes. Assesdiado por Rolling Stones e Led Zeppelins, Rory decidiu seguir seu próprio caminho. As bigbands eram pouco para seu séquito. O caminho dos santos do rock'n roll. Como santo, ou fantasma agora canonizado, Rory Gallagher carregava sua Fender Stratocaster de 1961 gasta e suja como se fosse um cajado a pregar pelo deserto de infieis suas letras que falavam de adversidades, amor e álcool. Para se atingir a alma do público somente a técnica não é suficiente. Técnica muitos tem. A obsessão santa de certos homens nasce diante de nossos sentidos perplexos.

Rory extrapola os sentidos. Os milhares de sons sobrepostos e incendiários que sua guitarra reverbera pela eternidade virtual, sem subterfúgios, sem pedais, somente elocubrações etéreas entre seus dedos, um doce cavalheiro irlandês, um homem simples a pregar as palavras do rock, em meio ao uísque, a cerveja e a noite, Rory preferia o povo, os discursos para a plateia, santo perambulante a tocar pelo mundo, independente da companhia, os homens escolhidos, Rory é assim, sem pontuação um guitarrista, um self-made-man, um enfant terrible e um rock star paradoxal sem se deixar perder pela fama. Rory desdenhava da fama. Preferia a música. E nós preferimos Rory.

Certa noite, na mesma noite em que se apresentava, Hendrix viu um show de Rory Gallagher. O público, exaltado, só falava daquele cabeludo usando camisa de flanela, cara de guri, debulhando notas, símbolos e descontruindo a sociedade moderna com sua simplicidade avassaladora e sincera. Alguns dias depois, perguntado sobre quem era o maior guitarrista do mundo, enciumado, Jimi respondeu: Perguntem à Rory Gallagher. E é isso que devemos perguntar. Quem é?

Eu, por mim, respondo: Rory Gallagher.

E sigo seu caminho santo em nome de todo o rock'n roll. Amém.

 
Uma hora e meia de rock e blues com Rory Gallagher

quinta-feira, 1 de março de 2012

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Caminhando Pelo Centro

A Feira do Livro é uma boa desculpa para pessoas como eu que deixaram de conviver, por comodidade, falta de tempo ou mesmo por não ter mais referências, caminhar pelo centro de Porto Alegre. Vivi minha infância e minha adolescência no bairro São João e o centro pra mim era o lugar onde meu pai trabalhava, ali na Coronel Vicente. Lugar gigantesco, prédios altos, o Centro me amedrontava. Quando era guri mesmo um tempo fiquei com medo por conta do noticiário da época do incêndio do prédio da Renner. Imaginação demais.

Comecei a conviver diariamente com minha entrada na UFRGS e o trabalho de contador e visitas a clientes e órgãos públicos. Muitas vezes, no intervalo das aulas, saía da João Pessoa só pra descer a Borges e caminhar pela Rua da Praia. A cinzenta Rua da Praia. É estranho mas eu gosto daquele cinza, do vento encanado e frio, das sombras dos prédios. E claro, me infiltrava na Galeria Chaves ou na Luza e ficava horas remexendo e ouvindo todos os discos de vinil de rock sem comprar nenhum.

Outras vezes caminhava até a Independência e ficava de bobeira na Megaforce, mexia em todos os discos e comprava um patch do Black Sabbath feliz da vida. Depois descia a Rua da Praia de novo e me deixava assistir ao movimento na Praça da Alfândega. Isso quando não estava trabalhando fazendo serviço de boy do escritório do meu pai. Aí caminhava rápido, e se aprende muito caminhando no Centro de Porto Alegre. O principal é aprender a andar sem guarda-chuva. Guarda-chuvas só atrapalham. A não ser que as marquises caíam dos céus, caminhar na chuva é o meio mais rápido e seguro, impede pontas de metal nos olhos, de deslocamento.

E a Praça da Alfândega ali, seus velhos jogadores de dama com tampinhas de garrafa, os punguistas pelos cantos, as prostitutas desdentadas nos bancos e os mendigos pedindo um troco para aquela turma de setentões que ainda vai lá fazer o footing e beber o café que não existe mais. Tem de tudo. Basta ser esperto. Sim, seria bem melhor ter mais segurança. Mas quem tem segurança? O amante do alheio é adepto da economia de mercado. Ele ataca onde existe demanda. O Centro de Porto Alegre é tão seguro quanto qualquer outro bairro da cidade. O preconceito está, como sempre, nos olhos de quem vê.

E a Feira, apesar de suas estruturas e de seus defeitos, chama à volta esse convívio. Nem me importo se não comprar livro algum. Só caminhar no centro já é uma leitura. Leitura de pessoas, de lugares, de histórias do pé de ouvido. O Centro é uma referência literária. Se não fosse, do que estaria escrevendo eu agora?

(publicada dia 18/11/2011 no Diário Gaúcho)